Feliz Ano-novo aos que cultivam a criança que os habitam, brincam de escorregador no arco-íris, cortam a lua em fatia de queijo e passeiam de roda-gigante no sol, porque sabem que a vida é breve e os apegos fastidiosos.
Feliz Ano-novo aos desempalhadores de pássaros, pois crêem no milagre da ressurreição e desdenham os sinais de morte, convencidos de que o amor supera a dor e a vida extrapola o conceito.
Feliz Ano-novo aos que fazem da solidão abrigo, fonte de exercício de vôo, conhecem o valor de cada palavra e a importância do recuo para agilizar o salto, convencidos de que é preciso aprender a fechar os olhos para ver melhor.
Feliz Ano-novo a quem cultiva paradoxos e já não guarda nenhuma certeza, apenas fé, e jamais eleva a voz para impor a sua razão, nem considera o senhor de todas as verdades, traz na alma as lições dos sofrimentos e contempla o semelhante como mistério e com paixão.
Feliz Ano-novo ao homem que, todo fim de tarde, acende as luzes da cidade, cuidando para não apagar as sombras e nem permitir que os ruídos do dia invadam a noite, provocando a desatenção das corujas.
Feliz Ano-novo aos colecionadores de memórias, que não deixam o tempo apagar-se, reinventam o passado disfarçado de futuro, recolhem em fotos e pinturas a paisagem que já não existe, reativam a lembrança dos velhos, e não admitem que a nostalgia camufle o sangue que adubou esperanças.
Feliz Ano-novo a quem sonega a palavra carregada de mágoa, cala ofensas e não se compraz da desgraça alheia, esvazia o coração de todo orgulho, jamais imprime arrogância à voz e se curva solitário a quem padece dessas pequenas desavenças humanas que inflam como grandes problemas.
Feliz Ano-novo aos que alumiam de indagações os passos da vida afora, e conservam as suas respostas no jardim onde plantam utopias, nunca desdenham o saber do pobre, o rumo do vento e as manhãs de domingo, confiantes de que a existência é o pingo de chuva que, ofertado entre trovões e relâmpagos, logo se esvai aquecido pelo sol.
Feliz Ano-novo a quem aplaude, de cima das mangueiras, os profetas que entram na cidade disfarçados de mendigos e proferem sentenças contrárias à lógica da guerra, anulando todos os argumentos do desamor e desvelando o rosto cínico de quem faz do poder um pódio de seu irrefreável narcisismo.
Feliz Ano-novo às borboletas que colorem os céus de nossos sonhos, a às tartarugas que vencem, desapressadas, a corrida do tempo, e aos peixes que jamais tiveram a curiosidade de conhecer a superfície das águas, e às mulas que, no fundo das minas, arrastam cegas o que enche de cobiça os olhos humanos.
Feliz Ano-novo a quem jamais renegou a sua família e não faz de sangue a tinta que registra sentimentos contabilizados. Antes, transubstancia em amor os vínculos de parentesco, em pão e vinho a comida à mesa, em festa o afeto indelével que tece, em fio invisível, a cumplicidade da tribo.
Feliz Ano-novo às mãos da culinária cotidiana, o cheiro do café aromatizando a aurora, a pele do leite despida em nata, o feijão catado como contas de um rosário, o arroz refogado na ternura e a calda açucarada da sobremesa farta em suspiros.
Feliz Ano-novo aos que ousam mergulhar na fonte que trazem dentro de si e deixam-se tragar pelo Inefável, transmutados no ser que de fato são.
(TEXTO ESCRITO POR FREI BETO – JORNAL “ESTADO DE MINAS”, 1° DE JANEIRO DE 2004)